sábado, 15 de junho de 2013

Dez anos após morte em campo, Fifa aposta na prevenção

O diretor médico da Fifa fala a VEJA sobre o trauma da morte do camaronês Foe, na Copa das Confederações de 2003, e sobre como a entidade trabalha para tentar preservar a saúde dos atletas.

Alexandre Salvador
A tragédia de 2003: Foe, de Camarões, é retirado de campo; o atleta morreu pouco depois
A tragédia de 2003: Foe, de Camarões, é retirado de campo; o atleta morreu pouco depois (Luca Bruno/AP)
"Aquilo foi um choque para nós. Mesmo com o treinamento adequado, não fomos capazes de salvar a vida do jogador. Mas percebemos outra coisa: não existe um registro confiável de casos como o de Foe"
No decorrer da Copa das Confederações no Brasil, a maior tragédia da história do torneio completará dez anos. Em 26 de junho de 2003, o jogador camaronês Marc-Vivien Foe sofreu um fulminante ataque cardíaco durante a partida de sua seleção contra a Colômbia. A partida era válida pela fase semifinal da Copa das Confederações de 2003, realizada na França. Desde a morte de Foe, houve outros episódios parecidos, que provocaram a morte de pelo menos um jogador ao ano – um deles no Brasil, em 2004. O zagueiro Serginho, do São Caetano, morreu após sofrer uma parada cardíaca num jogo contra o São Paulo, no Morumbi. Tanto no caso do camaronês como no do brasileiro, não havia um desfibrilador portátil ao lado do campo. O equipamento poderia ter sido a salvação desses e de outros jogadores que sofreram algum tipo de emergência cardíaca durante uma partida de futebol.
Foi exatamente o que aconteceu no ano passado com o jogador congolês naturalizado inglês Fabrice Muamba, do Bolton. O jogador foi salvo após sofrer uma parada cardíaca em campo. Teve de abandonar a carreira, mas vive sem sequelas. Para que o desfecho de episódios como esses sejam como o de Muamba e não como o de Foe, a Fifa decidiu intervir. No último congresso da entidade, realizado nas Ilhas Maurício, há três semanas, a entidade distribuiu kits de emergência com desfibrilador - desenvolvidos em parceria com a gigante do segmento de saúde Johnson & Johnson - às 209 federações nacionais associadas a ela. O principal idealizador do kit, o médico checo Jiri Dvorak, diretor médico da Fifa e presidente do Centro de Pesquisa e Avaliação Médica da entidade, esteve no Brasil na última semana para dar uma palestra aos 560 profissionais – médicos, enfermeiros e técnicos em enfermagem – escalados para trabalhar na Copa das Confederações de 2013. Dvorak falou a VEJA, em entrevista por telefone:

Quais foram os grandes avanços recentes na preservação da saúde dos jogadores de futebol? No período de quase vinte anos em que trabalho com a Fifa, posso mencionar três melhorias. O futebol só pode ser jogado se você estiver saudável, não lesionado. Na minha opinião, a prevenção de lesões foi segmento no qual houve o maior avanço. E ela começou fora da medicina, com a adaptação das regras do jogo. Quando eu comecei meu trabalho na Fifa, entradas por trás eram permitidas. Usar o cotovelo nas disputas no alto também não era algo passível de punição. Para um médico, isso era inaceitável. Temos uma série de estudos que comprovam os perigos dessas entradas, e conseguimos convencer a IFAB (International Football Association Board, órgão ligado a Fifa que decide sobre mudanças nas regras do futebol). Hoje, carrinhos por trás ou choques de cabeça diminuíram significativamente.
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O checo Jiri Dvorak, diretor médico da Fifa
O checo Jiri Dvorak, diretor médico da Fifa
Mas e os casos relacionados às mortes em campo, em decorrência de problemas cardíacos? Se você deseja que o futebol seja praticado no máximo de seu potencial você precisa estar apto fisicamente. Para tal, é preciso um acompanhamento médico muito próximo dos atletas. Por isso que tornamos obrigatório, desde 2006, uma avaliação física antes de competições da Fifa. Exigimos um eletrocardiograma a todos os atletas convocados e, no caso daqueles em que há suspeita de um problema cardíaco, é solicitada uma bateria adicional de testes, como ecocardiograma. Esses exames devem ser feitos no período de seis meses antes da competição. Para se ter uma ideia de como esse acompanhamento ainda é uma realidade restrita a algumas regiões do globo, costumo contar uma história que aconteceu comigo. Em 2008, minha equipe e eu fomos fazer o acompanhamento de jogadores africanos sub-17 convocados para disputar uma competição local. Metade desses garotos nunca tinham nem sequer sido examinados por um médico na vida inteira.

A morte de Foe foi determinante para que a Fifa tomasse alguma ação preventiva? Aquilo foi um choque para nós. Mesmo com o treinamento adequado, não fomos capazes de salvar a vida do jogador. Mas percebemos outra coisa: não existe um registro confiável de casos como o de Foe e de outros casos mais recentes, como o do Muamba, que felizmente foi salvo. Por isso, no ano passado, decidimos criar esse banco de dados, para aprendermos mais com os casos. Nós só ficamos sabendo dos casos mais relevantes, aqueles que acontecem em jogos com alguma cobertura. O que estamos fazendo agora é solicitar essas informações às federações nacionais para termos uma real noção desse universo. Para fazer qualquer estimativa com algum embasamento científico ainda é preciso trabalhar bastante.

Como o kit distribuído pela Fifa pode ajudar nessa função? A mochila foi criada com todos os equipamentos necessários para manter a vida de um jogador que vier a sofrer uma parada cardíaca súbita. O kit apenas não basta, é preciso fornecer o treinamento. E foi o que fizemos. Consultamos dez dos maiores especialistas do mundo em situações de emergência para montarmos os procedimentos para prevenção e atuação durante uma partida. Não há um milagre na mochila. Nosso objetivo foi de simplificar o resgate e passar o mínimo de instrução necessária para que esse conhecimento esteja presente à beira do campo em todas as partidas do mundo.

E quanto às outras modalidades? O único dado que temos vem de pesquisas italianas que comprovaram que os riscos são quase os mesmos em todas as modalidades.

No ano passado, o senhor publicou um estudo que analisou o uso de medicamentos como analgésicos e anti-inflamatórios, legalizados pelas leis do esporte. A conclusão da sua pesquisa, que envolveu os jogadores que disputaram a última Copa, foi de que 39% de todos os atletas tomavam analgésicos antes das partidas. Esse uso está diretamente relacionado ao número excessivo de jogos durante uma temporada? A suposição que se pode fazer é que quanto mais partidas o atleta disputar, maior é o risco de ocorrer um uso excessivo de medicamentos, principalmente anti-inflamatórios. Os dados são alarmantes: há equipes que disputam competições importantes em que todos os jogadores estão tomando algum tipo de medicamento, em alguns casos até mesmo três ao mesmo tempo. Ainda precisamos fazer um trabalho de reeducação de atletas e equipes médicas e mostrar que essa não é a melhor estratégia. Alguns jogadores pensam que tomando esses comprimidos antes das partidas ficarão protegidosde lesões, e isso obviamente não é o recomendado.

Quais são os riscos desse abuso de medicamentos? Os riscos são maiores a longo prazo, principalmente para o fígado e para os rins. Mas é preciso saber que existe a possibilidade de sangramentos no intestino ou no estômago se o uso dessas substâncias for excessivo.
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Os kits médicos distribuídos pela Fifa
Os kits médicos distribuídos pela Fifa
Embora essas substâncias sejam permitidas, minimizar ou mascarar os efeitos do desgaste físico não pode ser considerado um tipo de doping? É uma pergunta difícil. Eu não poderia chamar essa atitude como uma melhora artificial de desempenho, o que caracteriza o doping. Ou seja, numa interpretação restrita do conceito de dopagem esse uso de medicamentos não estaria contemplado. Mas, do ponto de vista da ética médica, eu oriento meus pacientes que se machucam a aguardar o processo natural de cura, e não apressá-lo artificialmente ou pior, mascarar os sintomas com remédios. É uma questão de ética médica.

O caso recente do ciclista americano Lance Armstrong, que admitiu o uso sistemático de substâncias proibidas, colocou o esporte de alto rendimento sob desconfiança. Esse caso afeta de alguma forma a imagem do futebol? Com a experiência de quase vinte anos atuando diretamente no futebol, não tenho provas de que haja um uso sistemático de doping no esporte. Conheço muitos times, jogadores e médicos que disputam as maiores competições do mundo. O uso de substâncias ilegais, incluindo drogas como maconha, tem se mantido constante nos últimos anos. Ele gira em torno de 70 a 90 casos por ano, lembrando que são realizados quase 30.000 testes nesse período. Ou seja, o porcentual é extremamente baixo. O uso de esteroides anabólicos é ainda menor, algo como sete ou nove casos anualmente, 0,02% dos atletas testados.

Mas Armstrong conseguiu driblar as autoridades e enganar os testes antidoping. O senhor não se preocupa que o mesmo possa ocorrer em outras modalidades? Não é uma preocupação para nós, porque nós fazemos uma cuidadosa avaliação dos riscos. Há basicamente duas situações nas quais existe a tentação de fazer uso de substâncias proibidas: na recuperação de uma lesão grave, que afasta o jogador dos gramados por um logo período, ou quando o atleta se aproxima do final de sua carreira. Felizmente, no futebol não existe a cultura do doping, diferente do que ocorre em outras modalidades. De qualquer forma, não estamos dormindo no ponto. Para a Copa das Confederações deste ano e para a Copa do Mundo do ano que vem vamos realizar testes de sangue e de urina de todos os jogadores convocados antes e durante a competição, para que possamos perceber variações anormais nesse período. É o chamado passaporte biológico. Isso é algo inédito no futebol e nos ajudará a fechar o cerco contra o doping no esporte.

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