Nota
dos servidores da Fundacentro (instituição de pesquisa em saúde e segurança do
trabalhador) sobre a Reforma Trabalhista
Postado
por Cristiane Oliveira Reimberg em 13 setembro.
A
Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017, conhecida como reforma trabalhista,
altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no
5.452, de 1o de maio de 1943, e as Leis nos 6.019, de 3 de janeiro de 1974,
8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991. As mudanças,
preconizadas como “modernização” da legislação trabalhista e adequação às novas
relações de trabalho, promovem, na verdade, a perda de direitos e possibilitam
a intensificação e precarização do trabalho, o que reflete diretamente sobre a
saúde física e mental dos trabalhadores.
O
trabalho intermitente e a terceirização de quaisquer atividades da empresa
contratante, por exemplo, regulamentam vínculos precários. Vários estudos
apontam maior incidência de adoecimentos e acidentes relacionados ao trabalho
entre os trabalhadores terceirizados. Ainda que se fale em mesmas condições dos
empregados contratados, tem sido constatado que isso não ocorre na prática.
Em
relação ao trabalho intermitente, considerado como “o contrato de trabalho no
qual a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua, ocorrendo com
alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados
em horas, dias ou meses”, é preciso considerar ainda que o trabalhador fica à
disposição do chamado do empregador. A convocação deve ocorrer com pelo menos
três dias de antecedência e, se aceita, não pode ser descumprida “sem motivo
justo”. Caso o trabalhador não vá prestar o serviço, ele deve pagar multa de
50% da remuneração. Na prática, o trabalhador fica com seu tempo de trabalho
reservado para o empregador e não dispõe dele livremente para si, mas receberá
apenas pelas horas do dia que trabalhar.
Não
é difícil refletir sobre os impactos que isso trará ao trabalhador e a sua
saúde. Se ele só recebe por trabalho executado, a composição de uma renda
mensal permanecerá incerta até que finde o mês. Além disso, nesta forma de
remuneração, existe a tendência de sobrecarga de trabalho em determinados
casos, visto que, em tal cenário, qual o trabalhador que recusará um pedido? Se
recusar, ele será chamado novamente? E quando ele estiver doente? Se não for
trabalhar, simplesmente não recebe pagamento. Tendem a crescer a negação do
adoecimento e o presenteísmo, situação em que o trabalhador doente continua
trabalhando mesmo sem ter condições para isso, agravando o seu quadro. O
trabalhador só deixará de trabalhar quando não aguentar mais. Além da
diminuição salarial, toda esta instabilidade pode gerar um cenário de
sofrimento mental e de mais precarização do trabalho.
Também
há a regulamentação do teletrabalho. A nova legislação aponta que “o empregador
deverá instruir os empregados, de maneira expressa e ostensiva, quanto às
precauções a tomar a fim de evitar doenças e acidentes de trabalho” e completa
que “o empregado deverá assinar termo de responsabilidade comprometendo-se a
seguir as instruções fornecidas pelo empregador”. Como servidores de uma
instituição de pesquisa em saúde e segurança do trabalhador, não podemos deixar
de externar nossa preocupação, pois sabemos que a prevenção de doenças e
acidentes do trabalho requer ações que ultrapassam a maneira simplista como a
questão foi tratada na “reforma”.
Nossas
pesquisas comprovam que não se conquistam ambientes seguros apenas oferecendo
informação aos trabalhadores. Entre outras coisas, é preciso que a própria
concepção do ambiente de trabalho preveja meios que garantam a prevenção de
acidentes e doenças. Mas como pensar em um ambiente laboral concebido de
maneira prevencionista se este ambiente é o próprio lar do trabalhador? E como
estabelecer um ritmo de trabalho que não gere adoecimentos por esforços
repetitivos se não há pagamento de pausa remunerada no teletrabalho? Como
evitar que o trabalhador esteja disponível ao trabalho 24 horas? Esta
intensificação e disponibilidade total causam desgaste físico e sofrimento
mental que podem levar ao adoecimento.
Outro
aspecto a ser considerado é que, atualmente, as empresas responsabilizam os
trabalhadores pelo adoecimento argumentando que eles não respeitam documento específico
que assinam, no qual, por exemplo, consta que não devem ultrapassar a jornada
de trabalho estabelecida. Na verdade, nenhum trabalhador trabalha mais porque
quer, mas sim para atingir produtividade e metas exigidas pelo contratante.
Portanto, se não houver mudanças na forma de se determinar essas metas
(atribuições que as empresas não aceitam compartilhar com representações de
trabalhadores), a tendência é de haver jornadas ainda mais extensas do que as
que já existem.
A
nova legislação traz ainda a possibilidade de redução de direitos via
negociação coletiva, além de dificultar o acesso do trabalhador à Justiça do
Trabalho, visto que ele deverá arcar com o custo do processo. Também fixa
indenizações baseadas no último salário contratual do ofendido. Se um
trabalhador ganha menos, a ofensa recebida vale menos. Como não pensar nos
casos de assédio moral ou de trabalhadores contaminados que adquirem doenças
como o câncer ocupacional? Mentalmente fragilizados, fisicamente adoecidos,
terão mais dificuldades de ter acesso ao direito de reparação que lhes é
devido.
A
Justiça do Trabalho deve se basear, segundo a nova legislação, no “princípio da
intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva”. Mas que vontade coletiva
é esta em que os lados que negociam não possuem a mesma força? Mesmo assim, a
Lei nº 13.467 afirma que a “convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho
têm prevalência sobre a lei” em alguns casos. Entre eles, estão: jornada de
trabalho, observados os limites constitucionais; banco de horas anual;
teletrabalho, regime de sobreaviso e trabalho intermitente; remuneração por
produtividade e por desempenho individual; enquadramento do grau de
insalubridade; prorrogação de jornada em ambientes insalubres, sem licença
prévia das autoridades competentes do Ministério do Trabalho.
Ocorre
que esses itens são estruturantes do bem-estar do trabalhador durante sua
jornada. Na prática, acaba-se com o contrato civilizatório que permite que a
sociedade funcione minimamente equilibrada. Para que haver Estado, esse
terceiro ente, se as negociações entre os vendedores e os compradores de força
de trabalho bastam, observando raramente preceitos constitucionais? A história
do desenvolvimento econômico mundial ensina que, sem regulação estatal, os
trabalhadores recebem pagamentos cada vez menores até chegarem a uma condição
miserável, na qual não contribuem mais ao sistema econômico como consumidores.
Não foi senão por isso que se estabeleceu o salário mínimo. No entanto, com o
artifício do teletrabalho, do trabalho intermitente e da negociação imperativa,
haverá trabalhadores recebendo muito menos que o mínimo, ficando excluídos da
participação na vida social.
Fundamental
destacar que, embora esses itens tenham relação direta com a saúde e a
segurança dos trabalhadores, a lei desconsidera esse aspecto. E ainda ressalta
que “regras sobre duração do trabalho e intervalos não são consideradas como
normas de saúde, higiene e segurança do trabalho para os fins do disposto” no
artigo que coloca que essas normas e o “adicional de remuneração para as
atividades penosas, insalubres ou perigosas” não podem ser alvo de negociação
coletiva. No entanto, permite que grau de insalubridade e prorrogação de
jornada em ambientes insalubres sejam negociados.
Além
disso, deve-se ressaltar que jornada de trabalho, vínculos precários e
remuneração por produtividade são aspectos da organização do trabalho que
influenciam diretamente no adoecimento do trabalhador e são levados em conta
por diferentes campos de estudos, como a ergonomia, a sociologia do trabalho, a
ergologia, a clínica do trabalho e a psicodinâmica do trabalho. Há casos
conhecidos em que a remuneração por produtividade levou ao adoecimento e até
mesmo à morte de cortadores de cana. Esses aspectos da organização do trabalho
também estão na causa dos adoecimentos em frigoríficos e bancos. São apenas
alguns exemplos que nos permitem delinear o impacto da nova legislação
trabalhista sobre a saúde de toda a população trabalhadora.
Um
último ponto a ser destacado, e não menos importante, é o caso das gestantes,
que para não trabalharem em “atividades consideradas insalubres em grau médio
ou mínimo” deverão apresentar atestado médico que recomende o afastamento.
Impedir a gestante de trabalhar em local insalubre é medida de proteção que não
deve ser fragilizada com exigência de qualquer documento médico, a não ser o
próprio exame que comprove a gravidez. O artigo, ao invés de dar liberdade de
decisão, condiciona o direito de preservação da saúde à apresentação de um
atestado médico.
A
partir da reforma trabalhista, a decisão de não se expor ao agente insalubre e
procurar um médico deverá partir da empregada gestante. Sabendo que esta
decisão trará contratempos ao setor onde trabalha e ao chefe, talvez até
comprometendo seu emprego, ela o fará mesmo assim? A que preço? Ao procurar um
médico, qual a chance do profissional ter as informações necessárias relativas
ao trabalho e à real condição do ambiente laboral para avaliar se a gestante
pode continuar ou não a ser exposta? Se as gestantes não podem ser expostas a
nenhum dos agentes insalubres reconhecidos, a exigência do atestado não faz
nenhum sentido.
Segundo
o Art. 189 da CLT, “serão consideradas atividades ou operações insalubres
aquelas que, por sua natureza, condições ou métodos de trabalho, exponham os
empregados a agentes nocivos à saúde, acima dos limites de tolerância fixados
em razão da natureza e da intensidade do agente e do tempo de exposição aos
seus efeitos”. O ideal seria que nenhum trabalhador fosse submetido à condição
insalubre. No caso de mulheres grávidas, os efeitos da exposição são ainda mais
preocupantes, uma vez que estão passando por várias modificações em seus
organismos, tornando-as mais frágeis a agentes agressivos, e ainda expondo o
bebê em fase de formação a estes agentes.
Há
na literatura vários estudos demonstrando malformação ou natimortalidade
provocados por exposição de mulheres grávidas a agentes agressivos. Assim como
outros tantos indicam que diversos agentes passam para as crianças através do
leite materno.
Além
disto, os bebês são mais suscetíveis a agentes tóxicos, e a exposição pode ter
consequências irreparáveis na vida dessas crianças. Trata-se da defesa do
direito à saúde e à vida. O laudo de um médico, seja este de empresa, do SUS ou
de confiança da gestante ou lactante, não altera o risco ambiental do local já
considerado insalubre. Ao permitir à gestante ou lactante trabalhar e amamentar
em local insalubre, a nova legislação está permitindo a exposição desses bebês,
ou seja, de incapazes, e suas mães a agentes agressivos.
Essas
mudanças aqui relatadas certamente trarão consequências para a saúde e
segurança dos trabalhadores. Caminha-se para um cenário em que a precarização e
intensificação do trabalho serão ainda maiores, o que pode levar a um aumento
dos adoecimentos e acidentes do trabalho. As relações de trabalho se
fragilizam, criam-se trabalhadores de diferentes categorias, os laços de
solidariedade são rompidos e a organização do trabalho cria o cenário propício
ao adoecimento e ao assédio moral.
Publicada
em 14 de julho de 2017 no Diário Oficial da União, a Lei nº 13.467 tem 120 dias
após a publicação para entrar em vigor. É preciso que ela seja revista antes
que suas modificações impliquem em mais adoecimentos e acidentes relacionados
ao trabalho, o que têm um custo social imensurável e um custo financeiro que
deveria ser levado em conta até mesmo por aqueles que se pautam unicamente por
questões econômicas.
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