quarta-feira, 18 de junho de 2014

Família de operário morto no Itaquerão ignora jogo para não sofrer



Rodrigo Bertolotto

Do UOL, em Caucaia (CE)
A escalação sombria desta Copa é formada por: Fábio; Raimundo, Pita, Souza e Marcleudo; Cleiton, Vinicius, Fabio Luiz e Muhammad; José Afonso e Ronaldo. Esses 11 operários deram a vida nas obras para o Mundial, mas parecem esquecidos agora que as atenções estão voltadas para a outra seleção brasileira.
O Brasil venceu a Croácia na estreia, mas os quatro gols da partida não foram vistos na casa de Paulo Renato e Dona Rita em Caucaia, cidade vizinha a Fortaleza (CE). "Ver esse jogo só me traz tristeza. Fico imaginando que meu filho estaria falando aqui do meu lado: `Mainha, fui eu que construi esse estádio.´ E ele não pôde nem ver esse jogo", conta a mãe de Ronaldo Oliveira dos Santos, 44, esmagado por um guindaste de 450 toneladas no Itaquerão há sete meses.
Teve queda livre da cobertura, choque elétrico, batida de peça metálica e até infarto. Quatro trabalhadores morreram na Arena Amazônia, três na Arena Corinthians, dois na ampliação do aeroporto Viracopos, um no estádio Mané Garrincha e outro na Arena Pantanal, em Cuiabá. Mas o caso de Ronaldo é mais simbólico.
Ronaldo fixava as cadeiras da Arena Corinthians. Talvez seu xará do comitê organizador, Ronaldo Fenômeno, sentou-se em uma delas nesta quinta. Ou Joseph Blatter ou Dilma Rousseff ou, quem sabe, Andrés Sanchez, responsável do Corinthians pelo novo estádio.
"Esse é um cabra safado, escroto mesmo. Disse que deu apoio às famílias, e nem apareceu no enterro daqui. Esse sujeito falou que o Ronaldo estava no lugar errado. Errado foram eles que sobrecarregaram o guindaste e não isolaram a área. Se eu encontrar, acabo com ele", desabafa Paulo Renato, irmão de Ronaldo, na casa sem reboco em rua de terra que a família vive em Caucaia.
De cinco irmãos, três trabalharam nos novos estádios do país. Ronaldo, Paulo e o caçula, Braz, montaram as cadeiras do Castelão, a arena cearense para o Mundial. Terminado o serviço, eles foram convidados para trabalhar em outras arenas. Ronaldo foi para São Paulo, Braz foi para Porto Alegre, e Paulo ficou  para cuidar da mãe, dona Rita. Depois da morte do irmão, Braz ainda trabalhou no estádio de Natal e no próprio Itaquerão. "Fiz isso pelo meu mano. Foi uma homenagem a ele. Terminei o trabalho que ele começou", disse Braz.
Paulo tenta engolir o choro quando lembra do dia do enterro. "O Ronaldo já tinha até comprado a passagem de retorno. Mas voltou num caixão, lacrado que a gente nem viu o corpo dele", relata.
Lacrado também estava o envelope plástico enviado pela Polícia Científica com os pertences que estavam no bolso de Ronaldo. Entre fotos e dentes de leite das filhas, a imagem de um cartão bancário estilhaçado impressiona. "Você pode imaginar como ele ficou só de olhar o cartão repartido em mais de 20 pedaços", resume o irmão.
A mulher dele, Jamile, que vive em Fortaleza, fez um acordo extrajudicial com a empreiteira Odebrecht, responsável pelo Itaquerão, mas não revela os valores. Mas a mãe e os irmãos de Ronaldo entraram com ação judicial para também receber indenização, afinal, Ronaldo ajudava a mãe com o dinheirinho mensal que mandava.
Jamile e suas filhas adolescentes Jullie e Juliana, preferem não falar sobre o assunto. "O guindaste caiu e abriu um buraco na minha vida. Não quero mais falar nisso. É passado e só me machuca", conta Jamile na porta de sua casa no Conjunto Ceará, no subúrbio da capital cearense. Ela também não quis ver o jogo, apesar de não morar mais com Ronaldo havia dois anos quando de sua morte.
O prefeito de Caucaia, Washington Gois, é primo de Ronaldo e decretou luto de três dias após a morte do parente. Um vereador já propôs que a rua em que a família mora seja rebatizada com o nome da vítima, mas o projeto não saiu do papel.
As 11 mortes no Brasil não chegam nem perto do nível de massacre que são as obras para o Catar receber o Mundial de 2022, com 964 operários mortos até o momento sob o calor de 50 graus do país árabe. A maioria deles é de imigrantes miseráveis da Índia, Nepal e Bangladesh. Mas a estatística brasileira é vexaminosa em comparação com a da Copa de 2010, quando dois trabalhadores morreram para erguer os estádios sul-africanos.
A partir de agora, porém, os estádios da Copa brasileira vão enterrar apenas os sonhos futebolísticos de 31 países, para só um comemorar no final. O futebol imita a vida, onde muitos sofrem para alguns poucos desfrutarem.



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