quinta-feira, 8 de maio de 2014

Nova NR-4: ilegal e perigosa.

Como ficou a “nova NR-4”? 

4.4.1: Os profissionais integrantes do SESMT devem possuir formação e registro profissional em conformidade com o disposto na regulamentação da profissão e nos instrumentos normativos emitidos pelo respectivo Conselho Profissional, quando existente.


Como era a “antiga NR-4”? 

4.4.1. Para fins desta NR, as empresas obrigadas a constituir Serviços Especializados em Engenharia de Segurança e em Medicina do Trabalho deverão exigir dos profissionais que os integram comprovação de que satisfazem os seguintes requisitos:

a) engenheiro de segurança do trabalho - engenheiro ou arquiteto portador de certificado de conclusão de curso de especialização em Engenharia de Segurança do Trabalho, em nível de pós-graduação;

b) médico do trabalho - médico portador de certificado de conclusão de curso de especialização em Medicina do Trabalho, em nível de pós-graduação, ou portador de certificado de residência médica em área de concentração em saúde do trabalhador ou denominação equivalente, reconhecida pela Comissão Nacional de Residência Médica, do Ministério da Educação, ambos ministrados por universidade ou faculdade que mantenha curso de graduação em Medicina;

c) enfermeiro do trabalho - enfermeiro portador de certificado de conclusão de curso de especialização em Enfermagem do Trabalho, em nível de pós-graduação, ministrado por universidade ou faculdade que mantenha curso de graduação em enfermagem;

d) auxiliar de enfermagem do trabalho - auxiliar de enfermagem ou técnico de enfermagem portador de certificado de conclusão de curso de qualificação de auxiliar de enfermagem do trabalho, ministrado por instituição especializada reconhecida e autorizada pelo Ministério da Educação;

e) técnico de segurança do trabalho: técnico portador de comprovação de registro profissional expedido pelo Ministério do Trabalho.


Por que o texto da “nova NR-4” é ilegal? 

Como vimos, a “antiga NR-4” definia os qualificativos dos profissionais que integram o SESMT. Mas não seria obrigação dos respectivos conselhos profissionais definir os esses qualificativos? Não. Essa obrigação sempre foi do MTE, estabelecida no art.162 da CLT, vejamos:

Art. 162 - As empresas, de acordo com normas a serem expedidas pelo Ministério do Trabalho (se referindo claramente à NR-4 – grifo nosso), estarão obrigadas a manter serviços especializados em segurança e em medicina do trabalho. 

Parágrafo único - As normas a que se refere este artigo estabelecerão:  

c) a qualificação exigida para os profissionais em questão e o seu regime de trabalho.

Assim, quando da redação do antigo texto da NR-4 (feita em 1990) o MTE agiu com extrema obediência ao texto legal, definindo os qualificativos dos profissionais que elencam o SESMT. É dessa responsabilidade que a “nova NR-4” foge. Ela transfere, delega, terceiriza aos conselhos profissionais uma responsabilidade que é exclusiva do MTE, estabelecida em lei. Tal fato resulta em ilegalidade do novo texto.

Assim, a “nova NR-4” se faz ilegal por afronta ao texto celetista, algo inadmissível para uma Norma Regulamentadora, uma vez que sua existência legal se ampara justamente na competência dada ao MTE pela CLT. Vale lembrar que, dentro do ordenamento jurídico brasileiro, uma norma inferior (aqui representada pela NR) não pode contrariar uma norma superior (aqui representada pela CLT). Esse é o entendimento já consolidado do Supremo Tribunal Federal (STF), vejamos:

“Normas inferiores não podem inovar ou contrariar normas superiores, mas unicamente complementá-las e explicá-las, sob pena de exceder suas competências materiais, incorrendo em ilegalidade.” (STF - Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.398-AgR, Rel. Min. Cezar Peluso, julgado em 25.06.2007)

Na mesma esteira, também lembra Bandeira de Mello (2006, p. 321): “[...] o regulamento, além de inferior, subordinado, é ato dependente de lei”.

De forma construtiva, saliento que se o novo texto da NR-4 descrevesse os qualificativos de cada um dos componentes do SESMT (como fazia a antiga redação), ainda que esses qualificativos fossem exatamente os repassados pelos respectivos conselhos profissionais, a roupagem de legalidade estaria configurada, e o MTE estaria cumprindo o que lhe determina o art.162 da CLT.


Os que já atuam como médicos do trabalho mas não estão inscritos no CRM local poderão continuar trabalhando? e os médicos do “programa mais médicos” poderão atuar na medicina do trabalho?

Muitos dirão que não. O meu entendimento é de que sim. Leiamos mais uma vez a “nova NR-4”:

“Os profissionais integrantes do SESMT devem possuir formação e registro profissional em conformidade com o disposto na regulamentação da profissão e nos instrumentos normativos emitidos pelo respectivo Conselho Profissional, quando existente”.

Existe um detalhe que passa despercebido por muitos nesse texto, inclusive por aqueles que entendem que a “nova NR-4” valorizará a nossa especialidade. Conforme o texto, primeira obediência que os profissionais do SESMT devem ter é quanto à “regulamentação da profissão”.

E o que diz a regulamentação do exercício médico no Brasil hoje? Diz que qualquer médico inscrito no CRM local (independente da especialidade), pode exercer a medicina em qualquer um de seus ramos ou especialidades (Lei 3.268/1957, art.17). Também os profissionais inscritos no “Programa Mais Médicos do Brasil” poderão assinar PCMSOs em locais onde não existam ou não haja disponibilidade de especialistas em Medicina do Trabalho nos termos da Lei 12.871/2013 (arts. 13, 15 e 16) combinada com a Lei 8.080/1990 (art. 6). Nunca nos esqueçamos: saúde do trabalhador é matéria de saúde pública!

Em suma, pela literalidade e estudo da “nova NR-4” e de acordo com a regulamentação da profissão médica, qualquer médico, de qualquer especialidade, pode exercer a Medicina do Trabalho (inclusive coordenando PCMSOs). O que ele não poderá fazer é se divulgar como “especialista em Medicina do Trabalho” ou “Médico do Trabalho” (conforme Pareceres do CFM números 08/1996, 17/2004 e 21/2010). À bem da verdade, essa regra vale para todas as especialidades médicas e não apenas a Medicina do Trabalho.

No entanto, qual a peculiaridade da Medicina do Trabalho com relação às outras especialidades? É que o empregador é quem escolhe esse profissional médico para todos os trabalhadores, muitas vezes motivado por um único objetivo: cumprir a legislação. Sendo assim, e apoiado na lógica da economia, o profissional escolhido muitas vezes é o mais barato. Nesse contexto, é bem provável que os não especialistas ou não dependentes da Medicina do Trabalho (por a terem apenas como “bico”) aviltem (desvalorizem) mais os preços do que os especialistas e dependentes da Medicina do Trabalho, e ganhem essa concorrência. Sem falar no serviço de menor qualidade que oferecerão. Péssimo para especialidade.


Quais os outros perigos da “nova NR-4”?

Falta de especialistas em medicina do trabalho que atendam plenamente a nova legislação.

É bem provável que a CTPP (“comissão tripartite”), por um possível e não intencional descuido, não discutiu as possíveis e ruins consequências em caso de uma mudança do item 4.4.1 da NR-4, nos moldes em que foi aprovado e publicado. Se tivessem discutido com profundidade o novo texto não seria aprovado. Conseguir um especialista em Medicina do Trabalho (ANAMT/AMB/CFM) não está tão fácil assim! Em suma, o cumprimento pleno da norma se tornará mais difícil (em muitos lugares, impossível), mais caro para os empregadores, além de dificultar o acesso dos trabalhadores aos Médicos do Trabalho devidamente reconhecidos. Vejamos:
  
Quantos especialistas em Medicina do Trabalho existem no estado de São Paulo?

R.: 216 (fonte: site da ANAMT – Associação Nacional de Medicina do Trabalho.


Obs.: pelo link acima é possível identificar nominalmente quem são os profissionais Médicos do Trabalho que atenderiam a “nova NR-4”, em todos os estados brasileiros. Ratificamos que essa relação cita apenas os médicos que autorizaram essa publicidade, ou seja, esse número pode ser um pouco maior. Lembramos também que a maior parte dos Médicos do Trabalho inscritos no CRM/CFM não fizeram prova de título de especialista, isto é, embora estejam adequados ao novo texto da NR-4, pertencem a uma geração em que um enorme quantitativo nem mais atuam, nem na Medicina do Trabalho, nem na própria medicina.

Apenas por comparação, quantos especialistas em Cirurgia Plástica existem no estado de São Paulo?

R.: 1520 (fonte: site da SBCP – Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica.


Percebam: o número de especialistas em Medicina do Trabalho (especialidade socialmente bem mais demandada do que a Cirurgia Plástica) é 700% menor do que o número de cirurgiões plásticos especialistas.

O que isso significa? Simples entender: com a “nova NR-4” vai faltar médicos especialistas em Medicina do Trabalho que atendam plenamente a nova regulamentação para a composição dos SESMTs. 216 é um número muito (mas muito) baixo perto da necessidade demandada pelo imenso parque industrial e produtivo paulista.   

Isso implicaria em muito maior dificuldade para os empregadores no cumprimento da legislação e consequentemente maior risco jurídico (além do fato disso se tornar muito mais oneroso por menor oferta dos profissionais especialistas). Já para os trabalhadores, tudo isso resulta em maior risco para o cuidado com a saúde, uma vez que, em última instância, dificulta também o acesso dos trabalhadores aos especialistas em Medicina do Trabalho que atendam plenamente as exigências do novo SESMT.

Em alguns estados, a situação ficaria ainda mais dramática. Confira o número de especialistas em Medicina do Trabalho (que atenderiam plenamente a nova NR-4) em alguns deles:

Rio de Janeiro: apenas 20.
Espírito Santo: apenas 13.
Pernambuco: apenas 13.
Ceará: apenas 07.
Amazonas (onde está sediada a Zona Franca de Manaus): apenas 02 (isso mesmo!).
Roraima e Acre: nenhum especialista em Medicina do Trabalho.

(Fonte: site da ANAMT – Associação Nacional de Medicina do Trabalho.


Ratifico que, da forma como está, a “nova NR-4”, além de ilegal, não é benéfica nem para a classe trabalhadora, nem para o patronato.

Na falta de especialistas em médicina do trabalho, qualquer médico (inclusive os do "programa mais médicos") deve assumir essa função ?

É isso que nos ensina a NR-7 desde 1996, em seu item 7.3.1, alínea “e”:

e) inexistindo médico do trabalho na localidade, o empregador poderá contratar médico de outra especialidade para coordenar o PCMSO (o que o empregador não pode fazer é ficar sem PCMSO – grifo nosso).

É importante salientar, como bem coloca o Despacho n.1 / 1996 do MTE, que a simples indisponibilidade de médicos do trabalho locais (e não apenas suas ausências locais) já justifica a aplicação prática desse item da NR-7. Em resumo, com a “nova NR-4”, esse item da NR-7, que em muitos locais até agora foi exceção, passará a ser a grande e única regra. Mais uma vez, triste para especialidade.

     Possíveis vendas de PCMSOS.

Será que alguns e inescrupulosos especialistas em Medicina do Trabalho, por serem mais exigidos e pela falta de concorrência, poderão a começar apenas a “vender caro suas assinaturas” para que algumas empresas cumpram plenamente (só no papel) a “nova NR-4”? Quero crer que não. Reflitamos.  

    Há esperanças?

Claro que sim. Acabo de ler no site da ANAMT sobre a divulgação da “nova NR-4”: Está escrito: “A ANAMT está discutindo o impacto dessa divulgação junto ao Conselho Federal de Medicina (CFM) para avaliar os possíveis desdobramentos dessa Portaria junto aos profissionais de SST.” Que seja uma boa, rápida e lúcida discussão!

Fico na torcida pela Medicina do Trabalho brasileira. 


Marcos Henrique Mendanha.


Médico especialista em Medicina do Trabalho (ANAMT/AMB); especialista em Medicina Legal e Perícia Médica (ABMLPM/AMB). Advogado especialista em Direito do Trabalho; Perito Judicial / Assistente Técnico; Coordenador do CENBRAP - Centro Brasileiro de Pós-Graduações (www.cenbrap.com.br); Diretor da ASMETRO - Assessoria em Segurança e Medicina do Trabalho Ltda.; Professor de Cursos de Pós-Graduação em Medicina do Trabalho, Perícias Médicas e Direito Médico; autor do livro "Medicina do Trabalho e Perícias Médicas: aspectos práticos (e polêmicos)" (Editora LTr).

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