quarta-feira, 19 de setembro de 2012

A verdade oculta no telhado


Terceiro maior produtor de amianto, o Brasil ignora os malefícios do mineral.

POR RODRIGO MARTINS

Uma grande marcha em Paris será realizada no dia 13 de outubro para lembrar as vítimas do amianto e pressionar os governos que ainda não proibiram a exploração e o uso do produto a tomar uma atitude. Um dos principais alvos da campanha será o Brasil, terceiro maior produtor mundial do minério, classificado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) no principal grupo de substâncias cancerígenas. Mais de 125 milhões de operários estão expostos ao amianto em todo o mundo, e cerca de 107 mil morrem anualmente em decorrência de doenças associadas às suas nocivas fibras. A França, que abrigará a manifestação, baniu o minério há 16 anos. Outros 65 países seguiram o mesmo caminho. Na lista estão os Estados Unidos, todas as nações da União Europeia, mas também muitas do Hemisfério Sul, inclusive os nossos vizinhos Argentina, Chile e Uruguai.

amianto (ou asbesto) constitui um grupo de minerais fibrosos amplamente utilizados pela indústria graças às suas notáveis propriedades. O material é um excelente isolante térmico e elétrico, além de resistente à fricção. Não por acaso, é empregado em mais de 3 mil produtos, de material de construção a peças automotivas (freios e juntas de cabeçote). No Brasil, 96,7% do amianto é usado pela indústria de fibrocimento, na fabricação de telhas e caixas d'água. Um lucrativo negócio que movimenta 2,5 bilhões de reais por ano.

A discussão sobre o banimento da substância no Brasil arrasta-se há mais de duas décadas. Atualmente, o Supremo Tribunal Federal analisa quatro ações diretas de inconstitucionalidade (Adin), patrocinadas pela indústria, que visam derrubar as legislações de quatro estados que proibiram a utilização do asbesto. Como observado pelo colunista Cláudio Bernabucci na edição 714 de Carta Capital, um estrondoso silêncio acompanhou as duas audiências públicas realizadas na Corte para debater o tema, em 24 e 31 de agosto. "A mídia dedicou pouca ou nenhuma atenção à explosiva questão que, em outros países, tem mobilizado profundamente a sociedade", pontuou o cientista político formado pela Universidade La Sapienza, de Roma.
  
Em fevereiro deste ano, os dois proprietários da multinacional Eternit foram condenados pelo Tribunal de Turim, na Itália, a 16 anos de prisão, além do pagamento de 95 milhões de euros em indenizações. Os autores da ação representam 1.830 mortos e 1.027 operários com moléstias causadas pelo amianto. No processo, restou provado que o magnata suíço Stephan Schmidheiny e o barão belga Louis de Cartier de Marchienne, fundadores da Eternit, sabiam há décadas dos malefícios do mineral e os esconderam para preservar o negócio.
O problema é tão grave que a OMS e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), ligada às Nações Unidas, recomendam o banimento de qualquer tipo de amianto e apoiam campanhas pelo fim da chamada "catástrofe sanitária do século XX". De acordo com a Associação Internacional da Seguridade Social, ao menos 3,5 mil britânicos morrem por ano em decorrência da exposição ao amianto. Nos EUA, estimam-se mais de 10 mil óbitos ao ano.

O cenário brasileiro ainda é nebuloso, em virtude do "apagão epidemiológico" causado pela subnotificação de casos de doenças e mortes. "Temos como contar apenas o que é incluído no sistema nacional de informações sobre mortalidade. Mas sabemos que boa parte das mortes relacionadas ao amianto não é registrada nos atestados de óbito ou relatadas pelos hospitais", afirma Guilherme Franco Netto, diretor do Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde. Ainda assim, entre 2000 e 2010, os funcionários da Pasta identificaram ao menos 2,4 mil brasileiros mortos por doenças associadas ao minério.
Ao todo, foram 1.298 óbitos por neoplasias malignas da pleura (a membrana que reveste o pulmão), 109 por placas pleurais, 156 por pneumoconiose e 827 óbitos por mesotelioma. Esse último é um tumor maligno raro e incurável, que costuma levar à morte do paciente menos de um ano após o diagnóstico. Na literatura médica, quase a totalidade dos casos de mesotelioma ocorre com trabalhadores que tiveram contato com amianto.
Foi o que aconteceu com o marido de Gisélia Vicentin, que faleceu há quatro anos, três meses após ser diagnosticado com a doença. Aldo Vicentin trabalhou no depósito de materiais da Eternit em Osasco (SP) entre 1964 e 1968. Ajudava a descarregar os caminhões que traziam amianto para a empresa. Depois disso, formou-se em Direito e trabalhou em outras indústrias, sem contato com o asbesto. Somente após se aposentar, em 1995, soube que vários colegas da antiga fábrica onde trabalhou na juventude começaram a adoecer.
"Sensibilizado com a situação, Aldo ajudou a fundar a Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (Abrea), mas costumava dizer que era o único do grupo que teve sorte e não foi contaminado. Mas a doença demora décadas para se manifestar", conta Gisélia. Em junho de 2008, no mesmo dia que o colegiado do STF avaliou uma liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio Mello para suspender a proibição do amianto em São Paulo, ele se internou no Incor para uma delicada cirurgia. Mal teve tempo de celebrar o resultado do julgamento, que manteve a validade da lei paulista até a análise do mérito. Vicentin teve extirpados o pulmão esquerdo, o diafragma e a pleura. Com fortes dores e dificuldade de respirar, faleceu um mês depois.
"Aldo sabia que estava marcado para morrer. Antes da internação, preparou todos os detalhes do velório e reuniu documentos para que eu pudesse processar a Eternit", diz a viúva, voz trémula. Em 13 de agosto, o juiz do trabalho André Eduardo Dorster Araujo condenou a Eternit a pagar uma indenização de 300 mil reais à família Vicentin. A empresa recorreu da sentença. Trata-se de um dos raros casos em que a Justiça brasileira condenou uma empresa do setor. Normalmente, a indústria tenta alongar ao máximo o andamento dos processos e oferece acordos extrajudiciais às vítimas e suas famílias. Mais de 4,5 mil acordos do tipo foram celebrados nos últimos 20 anos.


Hoje engajada na na diretoria da Abrea, Gisélia recebeu um convite para representar as vítimas brasileiras na marcha contra o amianto em Paris. "Depois de todo o sofrimento que o Aldo passou, me sinto na obrigação de dar continuidade à luta dele."


Todas as ações que tramitam no STF a favor da manutenção do amianto foram ajuizadas pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria (CNTI), com apoio do Instituto Brasileiro do Crisotila (IBC), que reúne executivos da indústria do amianto e líderes sindicais, numa estranha simbiose entre patronato e operariado. Os processos visam derrubar as restrições ao comércio de produtos com o minério nos estados de São Paulo, Pernambuco, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.
"Trata-se de uma defesa dos trabalhadores. A indústria emprega mais de 170 mil operários de forma direta ou indireta", diz o representante sindical Emílio Alves Ferreira Júnior, presidente da Comissão Nacional dos Trabalhadores do Amianto na CNTI e um dos diretores do IBC. "Além disso, as empresas operam com rígidos padrões de segurança. Enquanto a lei determina que o ambiente de trabalho só pode ter 2 fibras respiráveis por centímetro cúbico (cm3), temos um acordo que estabelece o limite de 0,1 fibra por cm3. Temos comissão de trabalhadores em cada empresa para fiscalizar isso, com estabilidade de emprego garantida. Não somos suicidas." 
Será? Certamente, Ferreira Júnior seria incapaz de medir quantos desses 170 mil trabalhadores vão morrer precocemente por causa do contato com o amianto.

A argumentação jurídica é basicamente a mesma em todos os processos: compete à União legislar sobre mineração e as leis estaduais não podem se sobrepor à lei federal n° 9.055, de 1995, que autoriza a exploração e o uso do amianto crisotila. Atualmente, o Brasil tem apenas uma mina de amianto em atividade, no município de Minaçu, interior de Goiás. Ela pertence à Sama Minerações Associadas, empresa de capital aberto controlada pelo Grupo Eternit. Até meados da década de 1990, as operações na mina eram compartilhadas com a Brasilit, do grupo francês Saint-Gobain. Com a perspectiva de proibição do amianto em toda a Europa, a Brasilit passou a investir em fibras alternativas e abandonou a exploração em Minaçu, deixando como herança um incalculável passivo de trabalhadores expostos ao amianto.
De toda forma, desde 2002 a Brasilit abandonou completamente o uso do asbesto. "Quando se consolidou a convicção da periculosidade de todos os tipos de amianto no meio científico internacional, o Grupo Saint-Gobain decidiu que todas as suas empresas que utilizavam o amianto deveriam abandoná-lo", afirma Carlos William Ferreira, diretor corporativo da Brasilit. "Os fios sintéticos são classificados pela International Agency for Research on Câncer, da OMS, como não cancerígenos e foram oficialmente recomendados pela Anvisa. E os custos de produção são apenas 10% mais caros."
Quando a Brasilit abandonou o amianto, houve um racha entre as fabricantes de telhas. Até então, todas as empresas do setor estavam reunidas na Associação Brasileira das Indústrias de Fibrocimento (Abifibro), que passou a negociar com o governo um prazo para as fabricantes se adaptarem antes de uma proibição completa do asbesto. Com um substituto para o amianto, era dado como certo que o mineral estava com os dias contados. Mas nada foi alterado na legislação e as demais fabricantes optaram por sair da Abifibro, criar o IBC e defender o "uso seguro" do crisotila, diz João Carlos Duarte Paes, presidente da associação. "A Brasilit se dispôs a transferir tecnologia para as concorrentes abandonarem o amianto, mas o grupo, liderado pela Eternit, optou por continuar a exploração e se uniu no Instituto Brasileiro do Crisotila para fazer lobby pelo amianto."


A briga comercial é usada até hoje como argumento dos defensores do asbesto. As empresas que mantêm a exploração do minério garantem que as normas de segurança impedem a contaminação dos trabalhadores. E acusam os opositores do amianto de defender os interesses comerciais da Brasilit, que usa fibras alternativas há mais de uma década. "É muita coincidência que a proibição ao uso do amianto tenha ocorrido especificamente nos estados em que a Brasilit tem fábrica", afirmou Elio Martins, presidente do Grupo Eternit, em 2011.

"Isso é desculpa", rebate Paes. "A Eternit tem uma linha de produtos com fibras alternativas desde 2007. A Isdralit também anunciou em seu site ter três fábricas que produzem telhas sem amianto."
O governo federal ainda não criou um consenso sobre o tema. Nas audiências públicas do STF, representantes dos ministérios da Saúde, da Previdência Social e do Meio Ambiente recomendaram categoricamente o banimento do amianto. O diagnóstico é que não compensa, mesmo em termos financeiros, manter uma atividade tão nociva. "Somente o custo estimado para tratar pacientes que desenvolveram câncer com amianto é superior a 291,8 milhões de reais em dez anos. E a conta não inclui gastos com atendimento ambulatorial e no tratamento de outras doenças associadas ao asbesto", comenta Franco Netto.

Além disso, o Brasil gasta mais de 107 milhões de reais em benefícios para os trabalhadores que adoecem com o amianto, destaca o coordenador-geral de Monitoramento de Benefícios por Incapacidade do Ministério da Previdência Social, Paulo Rogério de Oliveira. De acordo com ele, os trabalhadores no setor se aposentam após 20 anos de trabalho, que é a aposentadoria mais precoce entre todos os operários submetidos a fatores de risco. "Dispêndio nós teremos: ou vamos pagar seguro-desemprego para os trabalhadores ou pagamos para milhões de expostos ao amianto pensões, aposentadoria e auxílio-doença."

Por outro lado, representantes dos ministérios de Minas e Energia e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) sustentam que a proibição do amianto traria prejuízos ao País. Antônio José Juliani, analista do MDIC, destaca que o Brasil exporta 140 mil toneladas de amianto por ano e o banimento traria problemas para a balança comercial. "Perderíamos cerca de 80 milhões de dólares por ano com as exportações, além de deixar o País dependente de uma matéria-prima que precisa ser importada. Para fabricar os fios sintéticos, usa-se a resina de polipropileno, derivada de petróleo", afirmou a Carta Capital. Mas e a saúde do operário? "Fui convidado para falar só sobre os impactos econômicos." A resposta talvez tenha sido uma piada do integrante do ministério. Entenderemos assim.
Um parecer elaborado pelo economista Luiz Gonzaga Belluzzo, consultor editorial de Carta Capital, e outro desenvolvido pela Unicamp garantem, porém, que os impactos econômicos são insignificantes. Primeiro, por já existirem vários substitutos ao amianto. Segundo, pelo fato de o custo médio de uma telha com fibras alternativas ser apenas 12% superior à do amianto, valor que tende a se diluir quando analisado o custo total da obra. Por fim, os postos de trabalho perdidos tendem a ser compensados com a geração de empregos em outros segmentos. "Não há dúvidas quanto à imperiosidade do banimento do uso do amianto para garantir direitos fundamentais às populações expostas a essas fibras", registrou Belluzzo.
Além disso, especialistas contestam a tese de "uso seguro" do amianto. "Precisamos desmitificar essa falácia. Não existe 'amianto light', que não faz mal à saúde", ataca o pneumologista Eduardo Algranti, pesquisador da Fundacentro e consultor em saúde ocupacional da OMS. "Sim, o crisotila tem menor potencial cancerígeno que o amianto anfibólico, mas também é cancerígeno e não há níveis seguros de exposição a essa substância. Ainda que fosse possível evitar a contaminação dentro da mina ou das fábricas de fibrocimento, não há como garantir isso no transporte, na construção civil ou mesmo no descarte desses produtos", afirma. O médico cita ainda um estudo realizado com pacientes do ambulatório da Fundacentro, que atende funcionários de uma antiga indústria de fibrocimento em Osasco. "Dos 1.333 pacientes expostos ao asbesto, 356 (26,7%) apresentaram doenças relacionadas ao amianto, como asbestose e mesotelioma."


A despeito dos alertas de especialistas e da própria Organização Mundial da Saúde, o Grupo Eternit insiste em vender a ideia de que é possível trabalhar com o amianto de forma segura. Em resposta a perguntas enviadas por CartaCapital, a assessoria de imprensa da empresa diz que os rígidos controles dos processos, desde a extração até a fabricação de produtos utilizados pela população, "não permitem a liberação de fibras em concentração maior que a encontrada normalmente na atmosfera. Sem concentração de fibras, não há alterações". Além disso, a companhia destaca que não foram encontradas doenças respiratórias, relacionadas ao amianto, em trabalhadores que iniciaram a mineração do crisotila nos últimos 30 anos. "Eventual substituição abrupta e desnecessária do amianto crisotila no Brasil provocará o fechamento de indústrias, com consequente desemprego e o desabastecimento do mercado."

Auditora do Ministério do Trabalho e fundadora da Abrea, Fernanda Gianassi refuta o argumento da ausência de casos recentes de doenças relacionadas ao amianto. "Numerosos especialistas alertam que essas moléstias podem demorar décadas para se manifestar, como ocorreu com Aldo Vicentin", afirma. Recentemente, a associação que ela preside ingressou com uma ação no Supremo para questionar a constitucionalidade da lei que autoriza o uso do amianto crisotila. "Trata-se de uma questão de saúde pública, e não de quem tem ou não competência para legislar sobre um minério. Se os ministros julgarem a ação procedente, não precisaremos mais de leis estaduais de proteção."

Difícil será vencer o lobby do setor. A indústria investe pesado em publicidade pró amianto nos principais veículos de comunicação. CartaCapital chegou a recusar um desses anúncios, embora outras publicações tenham convenientemente aceitado a oferta. Durante as audiências públicas no STF, um outdoor em frente ao aeroporto de Brasília tentava sensibilizar os visitantes da capital pela manutenção da atividade. A peça ostentava o logotipo de duas destacadas revistas, Época e Exame, que concederam prémios à mineradora Sama. Além disso, apenas nas eleições de 2010, a companhia doou 1,9 milhão de reais aos mais variados partidos. A Eternit, que domina um terço do mercado de fibrocimento, contribuiu com mais de 1,8 milhão de reais.


  

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