Terceiro maior produtor de amianto, o
Brasil ignora os malefícios do mineral.
POR RODRIGO MARTINS
Uma grande marcha em Paris será
realizada no dia 13 de outubro para lembrar as vítimas do amianto e pressionar
os governos que ainda não proibiram a exploração e o uso do produto a tomar uma
atitude. Um dos principais alvos da campanha será o Brasil, terceiro maior
produtor mundial do minério, classificado pela Organização Mundial da Saúde
(OMS) no principal grupo de substâncias cancerígenas. Mais de 125 milhões de
operários estão expostos ao amianto em todo o mundo, e cerca de 107 mil morrem
anualmente em decorrência de doenças associadas às suas nocivas fibras. A
França, que abrigará a manifestação, baniu o minério há 16 anos. Outros 65
países seguiram o mesmo caminho. Na lista estão os Estados Unidos, todas as
nações da União Europeia, mas também muitas do Hemisfério Sul, inclusive os
nossos vizinhos Argentina, Chile e Uruguai.
amianto (ou asbesto) constitui
um grupo de minerais fibrosos amplamente utilizados pela indústria graças às
suas notáveis propriedades. O material é um excelente isolante térmico e
elétrico, além de resistente à fricção. Não por acaso, é empregado em mais de 3
mil produtos, de material de construção a peças automotivas (freios e juntas de
cabeçote). No Brasil, 96,7% do amianto é usado pela indústria de fibrocimento,
na fabricação de telhas e caixas d'água. Um lucrativo negócio que movimenta 2,5
bilhões de reais por ano.
A discussão sobre o banimento da
substância no Brasil arrasta-se há mais de duas décadas. Atualmente, o Supremo
Tribunal Federal analisa quatro ações diretas de inconstitucionalidade (Adin),
patrocinadas pela indústria, que visam derrubar as legislações de quatro
estados que proibiram a utilização do asbesto. Como observado pelo colunista
Cláudio Bernabucci na edição 714 de Carta Capital, um estrondoso silêncio
acompanhou as duas audiências públicas realizadas na Corte para debater o tema,
em 24 e 31 de agosto. "A mídia dedicou pouca ou nenhuma atenção à explosiva
questão que, em outros países, tem mobilizado profundamente a sociedade",
pontuou o cientista político formado pela Universidade La Sapienza, de Roma.
Em fevereiro deste ano, os dois
proprietários da multinacional Eternit foram condenados pelo Tribunal de Turim,
na Itália, a 16 anos de prisão, além do pagamento de 95 milhões de euros em
indenizações. Os autores da ação representam 1.830 mortos e 1.027 operários com
moléstias causadas pelo amianto. No processo, restou provado que o magnata
suíço Stephan Schmidheiny e o barão belga Louis de Cartier de Marchienne,
fundadores da Eternit, sabiam há décadas dos malefícios do mineral e os
esconderam para preservar o negócio.
O problema é tão grave que a OMS e a
Organização Internacional do Trabalho (OIT), ligada às Nações Unidas,
recomendam o banimento de qualquer tipo de amianto e apoiam campanhas pelo fim
da chamada "catástrofe sanitária do século XX". De acordo com a
Associação Internacional da Seguridade Social, ao menos 3,5 mil britânicos
morrem por ano em decorrência da exposição ao amianto. Nos EUA, estimam-se mais
de 10 mil óbitos ao ano.
O cenário brasileiro ainda é
nebuloso, em virtude do "apagão epidemiológico" causado pela
subnotificação de casos de doenças e mortes. "Temos como contar apenas o
que é incluído no sistema nacional de informações sobre mortalidade. Mas
sabemos que boa parte das mortes relacionadas ao amianto não é registrada nos
atestados de óbito ou relatadas pelos hospitais", afirma Guilherme Franco
Netto, diretor do Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do
Trabalhador do Ministério da Saúde. Ainda assim, entre 2000 e 2010, os
funcionários da Pasta identificaram ao menos 2,4 mil brasileiros mortos por
doenças associadas ao minério.
Ao todo, foram 1.298 óbitos por
neoplasias malignas da pleura (a membrana que reveste o pulmão), 109 por placas
pleurais, 156 por pneumoconiose e 827 óbitos por mesotelioma. Esse último é um
tumor maligno raro e incurável, que costuma levar à morte do paciente menos de
um ano após o diagnóstico. Na literatura médica, quase a totalidade dos casos
de mesotelioma ocorre com trabalhadores que tiveram contato com amianto.
Foi o que aconteceu com o marido de
Gisélia Vicentin, que faleceu há quatro anos, três meses após ser diagnosticado
com a doença. Aldo Vicentin trabalhou no depósito de materiais da Eternit em
Osasco (SP) entre 1964 e 1968. Ajudava a descarregar os caminhões que traziam
amianto para a empresa. Depois disso, formou-se em Direito e trabalhou em
outras indústrias, sem contato com o asbesto. Somente após se aposentar, em
1995, soube que vários colegas da antiga fábrica onde trabalhou na juventude
começaram a adoecer.
"Sensibilizado com a situação,
Aldo ajudou a fundar a Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (Abrea),
mas costumava dizer que era o único do grupo que teve sorte e não foi
contaminado. Mas a doença demora décadas para se manifestar", conta
Gisélia. Em junho de 2008, no mesmo dia que o colegiado do STF avaliou uma liminar concedida
pelo ministro Marco Aurélio Mello para suspender a proibição do amianto em São
Paulo, ele se internou no Incor para uma delicada cirurgia. Mal teve tempo de
celebrar o resultado do julgamento, que manteve a validade da lei paulista até
a análise do mérito. Vicentin teve extirpados o pulmão esquerdo, o diafragma e
a pleura. Com fortes dores e dificuldade de respirar, faleceu um mês depois.
"Aldo sabia que estava marcado
para morrer. Antes da internação, preparou todos os detalhes do velório e
reuniu documentos para que eu pudesse processar a Eternit", diz a viúva,
voz trémula. Em 13 de agosto, o juiz do trabalho André Eduardo Dorster Araujo
condenou a Eternit a pagar uma indenização de 300 mil reais à família Vicentin.
A empresa recorreu da sentença. Trata-se de um dos raros casos em que a Justiça
brasileira condenou uma empresa do setor. Normalmente, a indústria tenta
alongar ao máximo o andamento dos processos e oferece acordos extrajudiciais às
vítimas e suas famílias. Mais de 4,5 mil acordos do tipo foram celebrados nos
últimos 20 anos.
Hoje engajada na na
diretoria da Abrea, Gisélia recebeu um convite para representar as vítimas
brasileiras na marcha contra o amianto em Paris. "Depois de todo o
sofrimento que o Aldo passou, me sinto na obrigação de dar continuidade à luta
dele."
Todas as ações que tramitam no STF a
favor da manutenção do amianto foram ajuizadas pela Confederação Nacional dos Trabalhadores
da Indústria (CNTI), com apoio do Instituto Brasileiro do Crisotila (IBC), que
reúne executivos da indústria do amianto e líderes sindicais, numa estranha simbiose entre patronato e operariado. Os processos visam derrubar as restrições ao comércio
de produtos com o minério nos estados de São Paulo, Pernambuco, Rio de Janeiro
e Rio Grande do Sul.
"Trata-se de uma defesa dos
trabalhadores. A indústria emprega mais de 170 mil operários de forma direta ou
indireta", diz o representante sindical Emílio Alves Ferreira Júnior,
presidente da Comissão Nacional dos Trabalhadores do Amianto na CNTI e um dos
diretores do IBC. "Além disso, as empresas operam com rígidos padrões de
segurança. Enquanto a lei determina que o ambiente de trabalho só pode ter 2
fibras respiráveis por centímetro cúbico (cm3), temos um acordo que estabelece
o limite de 0,1 fibra por cm3. Temos comissão de trabalhadores em cada empresa
para fiscalizar isso, com estabilidade de emprego garantida. Não somos
suicidas."
Será? Certamente, Ferreira Júnior seria incapaz de medir quantos desses 170 mil
trabalhadores vão morrer precocemente por causa do contato com o amianto.
A argumentação jurídica é basicamente
a mesma em todos os processos: compete à União legislar sobre mineração e as
leis estaduais não podem se sobrepor à lei federal n° 9.055, de 1995, que
autoriza a exploração e o uso do amianto crisotila. Atualmente, o Brasil tem
apenas uma mina de amianto em atividade, no município de Minaçu, interior de
Goiás. Ela pertence à Sama Minerações Associadas, empresa de capital aberto
controlada pelo Grupo Eternit. Até meados da década de 1990, as operações na
mina eram compartilhadas com a Brasilit, do grupo francês Saint-Gobain. Com a
perspectiva de proibição do amianto em toda a Europa, a Brasilit passou a
investir em fibras alternativas e abandonou a exploração em Minaçu, deixando
como herança um incalculável passivo de trabalhadores expostos ao amianto.
De toda forma, desde 2002 a Brasilit
abandonou completamente o uso do asbesto. "Quando se consolidou a
convicção da periculosidade de todos os tipos de amianto no meio científico
internacional, o Grupo Saint-Gobain decidiu que todas as suas empresas que
utilizavam o amianto deveriam abandoná-lo", afirma Carlos William
Ferreira, diretor corporativo da Brasilit. "Os fios sintéticos são
classificados pela International Agency for Research on Câncer, da OMS, como
não cancerígenos e foram oficialmente recomendados pela Anvisa. E os custos de
produção são apenas 10% mais caros."
Quando
a Brasilit abandonou o amianto, houve um racha entre as fabricantes de telhas.
Até então, todas as empresas do setor estavam reunidas na Associação Brasileira
das Indústrias de Fibrocimento (Abifibro), que passou a negociar com o governo
um prazo para as fabricantes se adaptarem antes de uma proibição completa do
asbesto. Com um substituto para o amianto, era dado como certo que o mineral
estava com os dias contados. Mas nada foi alterado na legislação e as demais
fabricantes optaram por sair da Abifibro, criar o IBC e defender o "uso
seguro" do crisotila, diz João Carlos Duarte Paes, presidente da
associação. "A Brasilit se dispôs a transferir tecnologia para as
concorrentes abandonarem o amianto, mas o grupo, liderado pela Eternit, optou
por continuar a exploração e se uniu no Instituto Brasileiro do Crisotila para
fazer lobby pelo amianto."
A briga comercial é usada até hoje como argumento dos defensores do asbesto. As
empresas que mantêm a exploração do minério garantem que as normas de segurança
impedem a contaminação dos trabalhadores. E acusam os opositores do amianto de
defender os interesses comerciais da Brasilit, que usa fibras alternativas há
mais de uma década. "É muita coincidência que a proibição ao uso do
amianto tenha ocorrido especificamente nos estados em que a Brasilit tem
fábrica", afirmou Elio Martins, presidente do Grupo Eternit, em 2011.
"Isso é desculpa", rebate
Paes. "A Eternit tem uma linha de produtos com fibras alternativas desde
2007. A Isdralit também anunciou em seu site ter três fábricas que produzem
telhas sem amianto."
O
governo federal ainda não criou um consenso sobre o tema. Nas audiências
públicas do STF, representantes dos ministérios da Saúde, da Previdência Social
e do Meio Ambiente recomendaram categoricamente o banimento do amianto. O
diagnóstico é que não compensa, mesmo em termos financeiros, manter uma
atividade tão nociva. "Somente o custo estimado para tratar pacientes que
desenvolveram câncer com amianto é superior a 291,8 milhões de reais em dez
anos. E a conta não inclui gastos com atendimento ambulatorial e no tratamento
de outras doenças associadas ao asbesto", comenta Franco Netto.
Além disso, o Brasil gasta
mais de 107 milhões de reais em benefícios para os trabalhadores que adoecem
com o amianto, destaca o coordenador-geral de Monitoramento de Benefícios por
Incapacidade do Ministério da Previdência Social, Paulo Rogério de Oliveira. De
acordo com ele, os trabalhadores no setor se aposentam após 20 anos de
trabalho, que é a aposentadoria mais precoce entre todos os operários
submetidos a fatores de risco. "Dispêndio nós teremos: ou vamos pagar
seguro-desemprego para os trabalhadores ou pagamos para milhões de expostos ao
amianto pensões, aposentadoria e auxílio-doença."
Por outro lado, representantes dos
ministérios de Minas e Energia e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio
Exterior (MDIC) sustentam que a proibição do amianto traria prejuízos ao País.
Antônio José Juliani, analista do MDIC, destaca que o Brasil exporta 140 mil
toneladas de amianto por ano e o banimento traria problemas para a balança comercial.
"Perderíamos cerca de 80 milhões de dólares por ano com as exportações,
além de deixar o País dependente de uma matéria-prima que precisa ser
importada. Para fabricar os fios sintéticos, usa-se a resina de polipropileno,
derivada de petróleo", afirmou a Carta Capital. Mas e a saúde do operário?
"Fui convidado para falar só sobre os impactos econômicos." A
resposta talvez tenha sido uma piada do integrante do ministério. Entenderemos
assim.
Um parecer elaborado pelo economista
Luiz Gonzaga Belluzzo, consultor editorial de Carta Capital, e outro
desenvolvido pela Unicamp garantem, porém, que os impactos econômicos são
insignificantes. Primeiro, por já existirem vários substitutos ao amianto.
Segundo, pelo fato de o custo médio de uma telha com fibras alternativas ser
apenas 12% superior à do amianto, valor que tende a se diluir quando analisado
o custo total da obra. Por fim, os postos de trabalho perdidos tendem a ser
compensados com a geração de empregos em outros segmentos. "Não há dúvidas
quanto à imperiosidade do banimento do uso do amianto para garantir direitos
fundamentais às populações expostas a essas fibras", registrou Belluzzo.
Além
disso, especialistas contestam a tese de "uso seguro" do
amianto. "Precisamos desmitificar essa falácia. Não existe 'amianto
light', que não faz mal à saúde", ataca o pneumologista Eduardo Algranti,
pesquisador da Fundacentro e consultor em saúde ocupacional da OMS. "Sim,
o crisotila tem menor potencial cancerígeno que o amianto anfibólico, mas
também é cancerígeno e não há níveis seguros de exposição a essa substância.
Ainda que fosse possível evitar a contaminação dentro da mina ou das fábricas
de fibrocimento, não há como garantir isso no transporte, na construção civil
ou mesmo no descarte desses produtos", afirma. O médico cita ainda um
estudo realizado com pacientes do ambulatório da Fundacentro, que atende
funcionários de uma antiga indústria de fibrocimento em Osasco. "Dos 1.333
pacientes expostos ao asbesto, 356 (26,7%) apresentaram doenças relacionadas ao
amianto, como asbestose e mesotelioma."
A despeito dos alertas de especialistas e da própria Organização Mundial da
Saúde, o Grupo Eternit insiste em vender a ideia de que é possível trabalhar
com o amianto de forma segura. Em resposta a perguntas enviadas por
CartaCapital, a assessoria de imprensa da empresa diz que os rígidos controles
dos processos, desde a extração até a fabricação de produtos utilizados pela
população, "não permitem a liberação de fibras em concentração maior que a
encontrada normalmente na atmosfera. Sem concentração de fibras, não há
alterações". Além disso, a companhia destaca que não foram encontradas
doenças respiratórias, relacionadas ao amianto, em trabalhadores que iniciaram
a mineração do crisotila nos últimos 30 anos. "Eventual substituição
abrupta e desnecessária do amianto crisotila no Brasil provocará o fechamento
de indústrias, com consequente desemprego e o desabastecimento do
mercado."
Auditora do Ministério do Trabalho e
fundadora da Abrea, Fernanda Gianassi refuta
o argumento da ausência de casos recentes de doenças relacionadas ao amianto.
"Numerosos especialistas alertam que essas moléstias podem demorar décadas
para se manifestar, como ocorreu com Aldo Vicentin", afirma. Recentemente,
a associação que ela preside ingressou com uma ação no Supremo para questionar
a constitucionalidade da lei que autoriza o uso do amianto crisotila.
"Trata-se de uma questão de saúde pública, e não de quem tem ou não
competência para legislar sobre um minério. Se os ministros julgarem a ação
procedente, não precisaremos mais de leis estaduais de proteção."
Difícil será vencer o lobby do setor. A indústria investe pesado em publicidade
pró amianto nos principais veículos de comunicação. CartaCapital chegou a recusar um desses anúncios,
embora outras publicações tenham convenientemente aceitado a oferta. Durante
as audiências públicas no STF, um outdoor em frente ao aeroporto de Brasília
tentava sensibilizar os visitantes da capital pela manutenção da atividade. A
peça ostentava o logotipo de duas destacadas revistas, Época e Exame,
que concederam prémios à mineradora Sama. Além disso, apenas nas eleições de
2010, a companhia doou 1,9 milhão de reais aos mais variados partidos. A
Eternit, que domina um terço do mercado de fibrocimento, contribuiu com mais de
1,8 milhão de reais.
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