Trabalhadores estão no
centro das discussões sobre banimento do amianto.
O Supremo Tribunal Federal começou a discutir
ontem em audiência pública, os perigos envolvidos na extração,
industrialização e comercialização do amianto devido aos riscos ambientais e à
saúde. Embora o problema atinja toda a sociedade, o foco de boa parte das
discussões está na saúde do trabalhador, e se revela em casos concretos que
desembocam na Justiça do Trabalho em busca de reparação. A atuação do
Judiciário na garantia dos direitos desses trabalhadores vem acompanhando a
evolução do conhecimento e da legislação sobre o tema, somada à conscientização
em relação a princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana e aos
direitos sociais do trabalhador.
Foi no início do século XX que pesquisadores
começaram a observar um número significativo de mortes precoces e de problemas
pulmonares em regiões de extração de amianto. O primeiro relato de morte de
trabalhador por exposição ao mineral é de 1907, feito pelo médico inglês H.
Montagne Murray. Ele detectou a relação causal entre o desenvolvimento de
fibrose pulmonar e a manipulação de fios condutores de energia. Já o primeiro
diagnóstico de asbestose data de 1924. Na década de 30, surgiram, também na
Inglaterra, as primeiras leis que definiam a asbestose como doença relacionada
ao trabalho.
Em 1986, a Organização Internacional do
Trabalho aprovou a Convenção nº 162, que se propõe a fixar normas para a
utilização segura do amianto. Aprovada na 72ª reunião da Conferência
Internacional do Trabalho daquele ano, o documento entrou em vigor no plano
internacional em 1989. Um dos princípios gerais era o de que a legislação
nacional dos países que a ratificassem deveria prescrever medidas para prevenir
e controlar os riscos para a saúde oriundos da exposição profissional ao
amianto e proteger os trabalhadores desses perigos. Previa, ainda, que essa
legislação fosse submetida a revisão periódica, com base na evolução técnica e
científica sobre o tema.
Normas regulamentadoras
No Brasil, as primeiras regras de proteção
datam da década de 70. A Lei 6.514/1977 alterou os artigos da CLT relativos a
segurança e medicina do trabalho (Capítulo V do Título II) para introduzir
regras mais rigorosas voltadas à proteção dos trabalhadores, entre elas a
obrigatoriedade do fornecimento, pelo empregador, de equipamentos de proteção
individual (EPI). No ano seguinte, a Portaria 3.214/1978 do Ministério do
Trabalho e Emprego fixou as Normas Regulamentad oras (NR) previstas na nova
redação da CLT.
A introdução específica do amianto entre as
normas de proteção ocorreu, de fato, a partir de 1991, com a ratificação da
Convenção 162 da OIT pelo Decreto 126/1991 e pela inclusão, na Norma
Regulamentadora nº 15 (NR 15) do MTE, do Anexo 12, que trata dos limites de
tolerância para poeiras minerais em atividades nas quais os trabalhadores estão
expostos ao amianto.
Insalubridade
A partir daí, começaram a surgir reclamações
trabalhistas voltadas para o direito à insalubridade – primeiro passo no
reconhecimento da necessidade de proteção mais efetiva dos trabalhadores expostos
ao agente nocivo. Um processo ajuizado em 1994 na 1ª Vara do Trabalho de São
José dos Pinhais (PR) chegou ao TST em 1997 (RR-385.106/97.6). Nele, o
Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Ladrilhos Hidráulicos, Produtos de
Cimento e Artefatos de Cimento Armado de Curitiba, representando os
trabalhadores da Multilajes Pré-Moldados de Con creto Ltda., pedia o
reconhecimento do adicional de insalubridade.
O Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região
(PR) deferiu o pedido com o entendimento de que, embora fosse obedecido o
limite de tolerância previsto em lei, o manuseio do amianto, por si só, gera
direito ao adicional. "Entre a tolerância da lei e o laudo pericial, deve
prevalecer a opinião médica, até porque também é amparada na justiça e, pois,
na lei em última análise", afirmou o acórdão regional. No laudo, o perito
defendia que as atividades que envolvem o manuseio do amianto deveriam
"ser banidas do território nacional progressivamente, como já ocorreu em
muitos países desenvolvidos". Ao examinar recurso da Multilajes, o TST
manteve o entendimento.
Dano moral
A Constituição da República de 1988 e,
sobretudo, a Emenda Constitucional 45/2004 deram à matéria uma nova abordagem,
ao atribuir à Justiça do Trabalho a competência para examinar casos de dano
moral decorrente da relação de trabalho – entre eles os resultantes de
acidentes. Ao mesmo tempo, equiparou-se a doença profissional ao acidente de
trabalho. Abriu-se, então, um novo caminho para reparação aos trabalhadores.
São numerosos, hoje, os casos de indenização a empregados – e, em muitos casos,
aos seus herdeiros – vítimas das doenças decorrentes da exposição prolongada ao
amianto.
"O pó impregnava todo o ambiente"
É o caso, entre tantos outros, de Nivaldo, que
trabalhou, na década de 80, na Avibrás Indústria Aeroespacial S/A como operador
de produção, montando componentes para foguetes e mísseis – feitos com com
amianto. Em 2007, foi diagnosticado com mesotelioma, tipo agressivo de câncer
de pleura comprovadamente ligado à exposição e à inalação de amianto. O caso de
Nivaldo foi, segundo a advogada, o segundo diagnosticado na Avibrás.
Na reclamação trabalhista ajuizada na Vara do
Trabalho de Jacareí (SP), o operário contou que o pó da usinagem do amianto
"era tão fino e tão excessivo" que se infiltrava em todo o ambiente,
impregnando os uniformes, corpos e vias respiratórias dos trabalhadores. Em
abril de 2008, antes da prolação da sentença, a família noticiou a morte de
Nivaldo, e seus herdeiros assumiram o pólo ativo do processo, que resultou numa
condenação de R$ 200 mil por danos morais e R$ 100 mil por danos materiais.
A Avibrás interpôs, sucessivamente, recurso
ordinário e embargos de declaração rejeitados pelo Tribunal Regional do
Trabalho da 15ª Região (Campinas/SP), que também negou seguimento ao recurso de
revista. Por meio de agravo de instrumento (AIRR-73400-92.2007.5.15.0023),
tentou trazer a discussão para o TST, a fim de questionar o valor da
indenização, mas a pretensão foi frustrada pela Quarta Turma, que negou
provimento ao agravo.
Princípio da precaução
Caso semelhante foi examinado pela Sexta
Turma, desta vez envolvendo a Saint-Gobain do Brasil Produtos Industriais e
Para Construção Ltda. e a família de Ary, vítima, em 2003, de mesotelioma por
contato prolongado com o amianto. A Saint-Gobain (antiga Brasilit), condenada a
pagar indenização post mortem aos herdeiros, recorreu ao TST
(RR-40500-98.2006.5.04.0281) argumentando não haver comprovação de culpa ou
dolo que justificasse a condenação.
Os depoimentos retrataram que o empregado,
cuja função era a de comprador, circulava com frequência dentro da fábrica,
para verificar a quantidade de cimento e amianto para reposição, e sua sala
ficava a 50m do depósito de amianto. Uma das testemunhas afirmou que, no
período em que trabalhou na Saint-Gobain, o único EPI que recebeu "foi um
par de botinas".
O relator do recurso de revista da empresa,
ministro Aloysio Corrêa da Veiga, manteve a condenação. "A omissão da
empresa no cuidado com o meio ambiente seguro de seus empregados acarreta o
reconhecimento da sua responsabilidade objetiva pelos eventos danosos que, no
caso, não apenas eram presumíveis, mas também evitáveis", afirmou.
O relator ressaltou que as preocupações atuais
da sociedade quanto às questões ligadas a meio ambiente, condições de trabalho,
responsabilidade social, valores éticos e morais e dignidade da pessoa humana
"exigem do empregador estrita observância do princípio da precaução".
Trata-se, como explicou, de uma "obrigação de resultado": o
empregador tem o dever de antecipar e avaliar os riscos da atividade
empresarial e a efetivação das medidas de precaução necessárias. "No
Brasil, o amianto é permitido, embora não existam limites de tolerância
suficientemente seguros para garantir a vida e a saúde daqueles que estão em
contato diário com ele", afirmou.
"Ninguém usava máscara"
Em maio deste ano, a Primeira Turma do TST
examinou o caso de Enoque Pinheiro de Oliveira (AIRR-127500-11.2007.5.02.0006).
Entre 1970 e 1977, ele trabalhou na fábrica da Eternit S/A – a maior empresa do
mundo no ramo de exploração industrial do amianto – em Osasco (SP), como
servente, ajudante de desintegração de amianto, ajudante de marcenaria e meio
oficial eletricista. Como servente, Enoque varria e limpava a fábrica e
carregava restos de massa de cimento-amianto. Como ajudante de desintegração,
colocava o amianto sóli do na máquina de moagem e depois armazenava o produto
desintegrado em caixas, em meio a alta concentração do pó.
Em 1982, foi aposentado por invalidez. Em
1997, alertado por colegas sobre a nocividade do amianto, submeteu-se a
diversos exames que confirmaram o diagnóstico de asbestose. No ano seguinte,
ajuizou reclamação trabalhista buscando a responsabilização da Eternit pelas
despesas com tratamento, pensão vitalícia e indenização por dano moral. A
sentença da 6ª Vara do Trabalho de São Paulo deferiu os pedidos, fixando a
indenização em R$ 20 mil.
Os laudos e depoimentos constataram que os
operários aspiravam muita poeira no setor, e só passaram a receber máscaras a
partir de 1977/1978, quando a legislação passou a exigir o fornecimento de
EPIs. "Era uma máscara comum, e quando estava vencida iam até o
almoxarifado para substituí-la, mas nem sempre tinham outra para
reposição", afirmou uma das testemunhas. "Era uma máscara pequena e
que não prestava", afirmou outra. Um terceiro operário, que trabalhou por
20 anos em todos os setores da fábrica, afirmou que "ninguém usava
máscara", que os exaustores "não funcionavam" e que,
"quando estourava um saco de amianto, ficava tudo empoeirado".
A Eternit vem recorrendo desde então, sem
sucesso. Sustenta que não há nos autos "qualquer indício" de que
Enoque "esteja sofrendo de qualquer constrangimento, dor, angústia,
depressão ou tendo problemas psicológicos em consequência de sua suposta
moléstia ocupacional". Em maio, a Primeira Turma negou provimento a agravo
de instrumento e, um mês depois, a embargos de declaração. Ainda inconformada,
a empresa agora tenta, por meio de recurso extraordinário, levar o caso ao
Supremo Tribunal Federal, alegando "a patente inconstitucionalidade do
entendimento adotado e corroborado" pela Justiça do Trabalho.
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